5.13.2010

Coisas de índio


Em entrevista que fiz para a Revista Raízes, voltada aos alunos do Colégio Santa Dorotéia, o índio Daniel Mundukuru diz que não é possível separar a cultura brasileira da indígena. Ele nasceu em 1964, em Belém do Pará, na nação tupu mundukuru. Formado em Filosofia, com licenciatura em História e Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Daniel atuou durante 10 anos como educador social na Pastoral do Menor de São Paulo. É autor de vários livros sobre os costumes e a cultura indígena, como “Coisas de Índio” e “Contos indígenas brasileiros”, além de outras 31 obras publicadas. Entre outras atividades, participa ativamente de palestras e seminários destacando o papel da cultura indígena na formação da sociedade brasileira. Na entrevista realizada por e-mail, Daniel Mundukuru diz que a cultura indígena faz parte da formação da identidade brasileira e que o Brasil ainda tem uma dívida grande com aqueles que foram os primeiros habitantes do país.

O que representa hoje a comemoração do Dia do Índio? Por que comemorar a data?

DM: Hoje em dia não é mais correto falar do índio como se fosse um todo homogêneo. Esta generalização foi criada a partir de uma ficção que dizia que os portugueses haviam chegado às Índias e, por isso, seus habitantes eram índios. O que não se sabia à época é que o Brasil que os portugueses avistaram era a morada de milhões de pessoas pertencentes a diferentes povos que falavam diferentes línguas. Hoje, mesmo depois de tanta violência praticada pelos colonizadores, esta diversidade está assegurada e é preciso lembrar à sociedade brasileira que não existe mais o índio, mas diversos povos. Seria interessante considerar o “Dia do Índio” um momento de esclarecimento, de conscientização da sociedade sobre a real situação destes povos dentro desse nosso país que teima em esquecê-los e excluí-los.

A presença cada vez mais constante do homem branco nas tribos gera problemas? Como os indígenas absorvem a cultura das metrópoles?

DM: Esta pergunta valeria uma vida inteira para ser respondida. Imaginemos, porém, que a situação hoje não mudou muito desde 1500. Grupos econômicos continuam invadindo as terras indígenas para delas tirarem a riqueza (ouro, diamantes, minérios) e seus conhecimentos tradicionais através da biopirataria (plantas, ervas). As igrejas e religiões continuam dando ordem e destruindo a alma dos indígenas que estão respondendo a isso com suicídios, alcoolismo e aumento da violência doméstica e diminuição de sua esperança de viver.
Todas estas dificuldades estão aliadas à constante aproximação com a perigosa sociedade do consumo que vem obrigando as populações indígenas a adotarem um comportamento que não é tradicional. Isso gera novos desejos e necessidades de satisfação. Claro que não há nada de mal em desejar conhecer a tecnologia e os avanços da ciência, mas é preciso ter clareza de que muitas coisas da cultura indígena são incompatíveis com o mundo do ocidente.

Qual foi a contribuição mais importante da cultura indígena na formação da sociedade brasileira como conhecemos hoje?

DM: Penso que é muito difícil avaliar isso. Penso que a cultura indígena está no âmago do brasileiro. Não dá para separar a cultura brasileira do ser indígena. O “índio” não é brasileiro. O brasileiro é que é “índio”. E pronto.

Você percorre muitas cidades, já lançou diversos livros e também tem acesso à internet. O que a modernidade oferece de melhor e o que oferece de pior?

DM: Modernidade nem sempre é sinônimo de coisa nova. A comunicação à distância era uma técnica dominada por muitos povos. Havia uma evolução mental que ia chegar mais longe que a Internet. Acontece que o Ocidente brecou esta capacidade humana, criando nela o sentido da urgência. Ficamos todos escravos da tecnologia e nos esquecemos de crescer interiormente. Os povos indígenas estavam na direção dessa evolução interior, mas foram de fato “atropelados” pelo progresso.
O que temos agora é essa comunicação tecnológica. Eu não sou contra ela, ao contrário. Ela tem ajudado nossos povos a se apresentarem à sociedade brasileira. Através do domínio destas técnicas, nossos povos vão reforçando a própria memória ancestral. Tenho dito sempre que a memória precisa se atualizar para manter-se viva. O manuseio da tecnologia é fundamental para que isso aconteça.

Existem muitos escritores indígenas como você? Como é a literatura indígena?

DM: A literatura indígena é relativamente recente. Tem pouco mais de 10 anos. Ela é um jeito especial de olhar para o mundo a partir do modo indígena de ser. É uma forma de tornar o pensar indígena mais conhecido e respeitado por todos. Há cerca de duas dezenas de escritores espalhados pelo Brasil que estão produzindo lindos livros para crianças e jovens. Muitos escolhem o caminho da literatura infantil e juvenil por carregarem consigo a esperança de “fazer” a cabeça da sociedade brasileira a favor de nossos povos.

Muitos falam que o governo e o povo brasileiro têm uma dívida enorme com as populações indígenas pela matança, exploração e tomada de terras. Você compartilha dessa opinião?

DM: Não sou do tipo que pensa em pagamento retroativo, mas acho sim que o Brasil – como nação que se construiu sobre os corpos de muita gente pobre e excluída – tem uma dívida que teria que ser paga. Como? Demarcando as terras que ainda não o foram, abrindo linhas de crédito para as comunidades que estão vivendo nas cidades grandes, reforçando a política de cotas para indígenas, absorvendo os indígenas formados no mercado de trabalho, apoiando as iniciativas indígenas em prol da formação, da profissionalização, criando políticas culturais próprias para os indígenas, criando a Universidade Indígena e tornando a Funai um órgão administrado pelos próprios indígenas. Isso é pouco, mas já é um começo.

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